Hidrologia

Escoamento Superficial ou Vazão

A vazão afluente é definida como sendo a vazão que chega a um determinado ponto, em particular um aproveitamento hidrelétrico, e é determinante na avaliação da energia disponível. A vazão afluente depende das condições  hidrológicas naturais da bacia hidrográfica e dos aproveitamentos existentes a montante.

Quando inexistem aproveitamentos hidrelétricos a montante ou eles operam com nível constante, esta vazão é chamada de vazão natural afluente, ou seja, é a vazão que existia naturalmente antes de qualquer intervenção humana.

Portanto, imaginemos um país começando a desenvolver seu parque de geração.

Neste caso, a análise da viabilidade dos aproveitamentos inicia-se com o estudo da vazão natural uma vez que inexistem outros aproveitamentos. Este também é o caso do primeiro aproveitamento de uma bacia hidrográfica.

Análise Estatística das Vazões

A vazão é medida em determinados pontos dos rios das diversas bacias hidrográficas. A série das medições de cada ponto forma um conjunto de dados horários, diários ou mensais.

A grande questão neste capítulo é como analisá-los para a geração de energia.

Os relatórios anexos apresentam as vazões naturais mensais de todos os pontos de medição no país revisadas pelo ONS entre 1931 e 2006.

Esta Tabela  apresenta os dados das médias mensais da vazão natural de um dos pontos nos últimos 70 anos. Observa-se que estão organizados de forma matricial em função dos anos e dos meses.

Estes dados podem ser apresentados por mês, conforme esta Figura e são séries temporais. A primeira conclusão é o comportamento cíclico anual da vazão. Esse comportamento pode ser melhor visualizado nesta Figura, que mostra apenas os valores mensais máximos, médios e mínimos. Observamos que os valores máximos e mínimos mensais apresentam pontos que parecem fugir da normalidade anual. Estes pontos, conforme mostraremos depois, são anos atípicos nos quais fenômenos climáticos anômalos ocorreram. Dependendo do estudo a ser feito, estes valores extremos contaminam os dados e podem nos levar a conclusões erradas. Para contornar este problema, podemos utilizar a estatística para retirar valores extremos. Na figura anterior utilizamos a função percentil. Esta função elimina valores extremos com pequenas probabilidades de ocorrência.

A próxima Figura apresenta os valores anuais médios, máximos e mínimos das vazões . Observa-se que não existe um comportamento cíclico plurianual e as variações parecem mais aleatórias. Isto sugere a hipótese de que as vazões são séries temporais estacionárias. Contudo, análises mais detalhadas devem ser feitas antes das conclusões finais.

Trabalhar com os dados de vazão em m3/s não é muito conveniente para a comparação entre diversos rios e aproveitamentos. Portanto, a primeira coisa a ser feita ao se lidar com os dados de vazão é descobrir seu comportamento estatístico. Para isso, é conveniente normalizar a série de vazões com relação a média, conforme mostra a Figura.

A Figura em anexo apresenta a comparação entre as vazões normalizadas de Belo Monte e Simplício. Observa-se que a comparação das vazões normalizadas é muito mais conveniente. Apesar dos rios apresentarem valores médios de vazão extremamente diferentes, 411 m3/s para Simplício e 7.851 m3/s para Belo Monte, os valores máximos normalizados estão entre 4 e 4,5 pu.

A densidade de probabilidade, obtida a partir do histograma da vazão, não pode ser, a priori, classificada como nenhuma das distribuições normalmente utilizadas mesmo com a grande quantidade de pontos utilizados. A distribuição acumulada nos fornece a probabilidade da vazão ser inferior a um determinado valor.

Além disso, observa-se um forte crescimento na densidade de probabilidade antes de atingir seu máximo e um lento declínio para vazões superiores. Este comportamento é típico em grandezas físicas que não podem ser inferiores a zero mas que não possuem restrição física para seu máximo.

Outra maneira muito comum de se apresentar estes dados é através da curva de persistência. No eixo dos x é apresentado o tempo, em percentual, que é o complemento da distribuição acumulada do histograma. Este valor tem o significado do tempo em que a vazão, apresentada no eixo y, é inferior a um determinado valor. A partir da curva de persistência é possível calcular a probabilidade da vazão ser superior ou inferior a um determinado valor.

Esta curva pode ser aproximada pela seguinte equação:

eq persistencia

Onde:

V é a vazão normalizada;

t é o tempo, em percentual;

A e B são constantes.

As constantes podem ser determinadas da seguinte maneira:

eq parametros persistencia

Onde:

Vmin é a vazão mínima;

Vmed é a vazão mediana.

Conforme pode ser visto na curva da persistência, esta aproximação é mais adequada para as vazões inferiores a média uma vez que os parâmetros foram obtidos a partir da vazão mediana e da vazão mínima. No caso específico de Simplício, Vmin é igual a 24% e Vmed é igual a 73%. Portanto, teremos A igual a 0,23 e B igual 1,5762.

Como a vazão mediana e a vazão mínima são mais insensíveis ao tamanho da amostra, elas foram utilizadas para aproximar a curva de persistência. Além disso, do ponto de vista energético, as vazões menores são mais importantes.

A parte da curva de persistência entre a vazão mediana, que corresponde a 50% do tempo, e a vazão de percentil 97%, que corresponde a 3% do tempo, também pode ser representada pela expressão anterior. Neste caso, os parâmetros serão calculados da seguinte maneira:

eq perisitencia 2 

Portanto, a curva de persistência pode ser aproximada por duas expressões bastando apenas calcular 3 pontos da massa de dados originais - Vmin, Vmed e V97%.

Outra questão muito importante é qual a quantidade de água que devemos armazenar para regularizar a vazão. Para responder a esta questão devemos considerar as equações do balanço hídrico. Como estamos trabalhando apenas com os dados de vazão em um determinado ponto, podemos simplificar a equação do balanço hídrico desprezando a precipitação, a evapotranspiração e o fluxo subterrâneo.

eq rippl

Isto significa que basta somarmos as vazões médias mensais normalizadas. O Gráfico anexo mostra o somatório anual das variações diferenciais mensais, chamado de volume diferencial anual, e o somatório acumulado considerando o aproveitamento com armazenamento zero antes de 1931.

Conforme esperado, os volumes diferenciais anuais oscilam entre valores positivos e negativos uma vez que a média desses valores é zero por definição. Com este gráfico podemos determinar os anos de maiores afluências e os de menores afluências. No caso específico deste aproveitamento, 1983 foi o ano com maior volume de águas e 1954 foi o ano com menor volume. Observamos que enchentes ocorreram periodicamente a cada 13/16 anos e secas ocorreram em maior número, mas com periodicidade aleatória entre 11 e 19 anos.

Por outro lado, observamos que, para este aproveitamento, os anos de 1953 a 1960 e de 1998 a 2003 foram todos abaixo da média. Isto ajuda a explicar um pouco o racionamento de 2001.

Apesar dos gráficos apresentarem dados normalizados, é importante ressaltar que a base mudou. Até agora, a base utilizada foi a vazão média de toda a série de medições, chamada de Média de Longo Termo - MLT. A base dos gráfico de volume passará a ser o volume base anual, definido como sendo a vazão MLT, em m3/s, vezes o número de segundos do ano. Isto significa que 1 m3/s durante um ano corresponde a 31,536 x 10-3 km3. Desta forma, volume base é a vazão média do aproveitamento vezes este fator de conversão.

Para calcular este gráfico deve-se subtrair a média de cada vazão média mensal normalizada e fazer o somatório desta diferença conforme a expressão abaixo. Ao mês de janeiro de cada ano foi somado o mês de dezembro do ano anterior.

eq rippl 2

O segundo gráfico mostra a variação acumulada dos volumes diferenciais anuais. Observamos claramente que os ciclos hidrológicos são plurianuais e, conseqüentemente, reservatórios com volumes consideráveis seriam necessários para regularizar esta vazão. Para garantir reserva para o pior cenário hidrológico registrado neste empreendimento, seria necessário um reservatório com 51,6 km3 (3,98 pu de volume). Contudo, o reservatório real deste aproveitamento terá apenas 0,1 km3 e não poderá variar porque o reservatório operará a fio dágua. Além disso, é importante ressaltar que o pior cenário hidrológico deste aproveitamento ocorreu em 2003, logo após o racionamento.

Em função do apresentado, concluímos que os aproveitamentos hidrelétricos estão sujeitos a variações extremas de vazão devido ao comportamento cíclico anual, originado pelos períodos úmido e seco e por variações de longo prazo ainda não modeladas corretamente.

Estas características são comuns a todos aproveitamentos hidrelétricos e nos leva às seguintes questões:

1.      Qual a maior carga que está usina poderá alimentar sozinha continuamente durante todo o ano?

2.      Qual o risco de não haver água suficiente em determinado ano para alimentar esta carga?

3.      Como aproveitar a água excedente durante os anos ou meses de maior vazão?

4.      Qual o risco de vazões superiores às vazões registradas?

 Essas questões são básicas para a análise da viabilidade econômica do aproveitamento hidrelétrico.

A primeira questão nos leva às definições de energia firme e energia assegurada, a segunda questão nos leva ao problema do risco hidrológico, a terceira à questão da energia secundária e a última à questão do controle de cheias.