GERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA 

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O risco do déficit de energia do sistema gerador brasileiro

Altino Ventura, Consultor, Canal Energia, 22/11/2004

Ao longo das décadas de 80 e 90, diversas autoridades do setor elétrico brasileiro “alertaram” a sociedade, em várias ocasiões, sobre possíveis racionamentos de energia elétrica, sempre para cerca de três a cinco anos à frente. Esta situação de “falta de energia” se configurava em um contexto de expansão dos sistemas de geração e de transmissão em ritmo inferior à evolução prevista do consumo, principalmente por dificuldades de viabilizar os elevados investimentos no setor elétrico.

Neste período, no entanto, o mercado de energia elétrica acompanhou o baixo crescimento da economia e as vazões afluentes às usinas hidrelétricas foram razoavelmente favoráveis, o que permitiu atender os consumidores sem maiores restrições quanto ao suprimento de energia elétrica, exceto em 1986, quando ocorreram racionamentos nas regiões Sul e Nordeste.

A partir do grande racionamento que o país enfrentou no ano de 2001, a sociedade brasileira “descobriu” que o evento “falta de energia elétrica” é algo que pode ocorrer. De fato, em todos os países do mundo, os seus sistemas elétricos são planejados e operados, por razões essencialmente econômicas, visando um equilíbrio entre a qualidade e o custo da energia elétrica, de forma a permitir que a sociedade possa pagar e dispor deste importante insumo. Neste contexto, sempre haverá um certo risco de ocorrer um racionamento de energia, ou seja,  não se tem uma garantia plena de atender à totalidade dos requisitos do mercado, devido principalmente às incertezas em relação ao futuro, seja pelo lado da demanda seja pelo lado da oferta.

A partir daquele ano, o assunto “garantia de atendimento” passou a ser amplamente discutido em diversos fóruns, na Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, como também em seminários, em artigos  publicados em jornais e revistas técnicas e manifestações referentes à necessidade de reduzir os níveis de risco do sistema gerador para valores próximos a 0% ou mesmo planejar e operar o sistema  “sem nenhum risco de déficit”.

Defesas referentes à incorporação de térmicas ao sistema gerador predominantemente hidrelétrico nacional também foram feitas, com o objetivo de aumentar a garantia de suprimento ao mercado. Todas estas propostas relacionadas com uma melhor qualidade do suprimento podem ser adotadas, evidentemente com os respectivos custos, que deverão ser assumidos pelos consumidores, cabendo avaliar se os mesmos estão dispostos a “aceitar” esta melhor qualidade do suprimento com um preço mais elevado da energia elétrica, em relação ao alto valor já praticado no Brasil, diante da renda da população.

Finalmente, em diversas oportunidades, foi demonstrado um certo desconhecimento sobre como foi estabelecido o risco anual de déficit de energia de 5%, utilizado durante muitos anos no Brasil.

A questão é muito importante, na medida em que a adoção de um critério de ajuste do programa de obras de geração e transmissão à evolução dos requisitos do mercado estabelece a quantidade, a qualidade e os custos da energia elétrica para os consumidores: quanto maior a qualidade - continuidade de suprimento e baixos riscos de déficit - maiores os custos. Com a criação da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), esta importante questão  será reexaminada em profundidade. Resgatar os trabalhos e estudos desenvolvidos sobre o risco do déficit de energia utilizado pelo setor elétrico será muito útil, na medida em que possibilita incorporar as experiências vivenciadas nas últimas décadas.

O primeiro critério adotado no país para ajustar o programa de obras, particularmente o de geração, aos requisitos do mercado foi estabelecido pela CANAMBRA em 1966, nos trabalhos do Comitê Centro-Sul, para as regiões Sudeste e Centro-Oeste, tendo sido este o primeiro trabalho de planejamento sistêmico do setor elétrico brasileiro. Este critério, de natureza determinística, ficou conhecido como o do período crítico e da energia firme, e estabelecia a não-ocorrência de déficits de energia na hipótese de repetição, no futuro, das piores sequências hidrológicas do histórico disponível das vazões nos rios, onde se localizam as usinas.

Este critério foi utilizado com sucesso pelo planejamento da expansão do sistema gerador e pela sua operação nos últimos anos da década de 60, ao longo dos anos 70 e aperfeiçoado nos primeiros anos da década de 80, no sentido de considerar a evolução dinâmica das configurações de usinas e mercados.

Por diversas razões, que não serão aqui apresentadas, devido à limitação da extensão do artigo, este critério foi considerado inadequado para avaliar a geração das usinas hidrelétricas, principalmente por não tratar as vazões dos rios como variáveis aleatórias, com um tratamento probabilístico. Assim, optou-se pelo estabelecimento de um critério probabilístico, em substituição a este determinístico, que considerasse a aleatoriedade das vazões nos rios.

Desta forma, considerando que o assunto envolvia as áreas de planejamento da expansão e da operação do sistema elétrico, foi criado pela Eletrobrás, que na ocasião coordenava os dois organismos colegiados GCOI e GCPS, um subgrupo misto, no âmbito dos dois comitês, com o propósito de definir o novo critério.

Este subgrupo realizou um vasto e competente estudo sobre o assunto durante dois anos e meio, de 1983 a 1985, tendo consolidado os seus trabalhos em diversos relatórios específicos, conforme a seguir: 1- Avaliação do Critério Tradicional de Energia; 2 - Metodologias para Cálculo do Custo Social do Déficit de Energia; 3 - Avaliação dos Custos Marginais de Expansão de Energia; 4 - Determinação das Energias Garantidas a Riscos Pré-fixados; 5 - Determinação das Energias Garantidas para Custos de Déficit Pré-Fixados, 6 - Diagnósticos dos Critérios de Atendimento à Demanda Máxima; e finalmente o Sumário Geral do Trabalho. Todos estes relatórios encontram-se disponíveis para os interessados no assunto.

O critério probabilístico de ajuste do programa de obras de geração aos requisitos do mercado de energia, ao longo do horizonte de planejamento, foi analisado pelo subgrupo através de um processo de otimização, com a igualdade entre os custos marginais de operação e os custos marginais de expansão do sistema gerador. Como esta igualdade incorpora duas variáveis – por um lado, o custo do déficit - custos e benefícios da energia elétrica para a economia -, e por outro lado, o risco do déficit - qualidade do suprimento, particularmente a continuidade, existem portanto dois enfoques para a solução de compromisso entre a necessidade de recursos para investimentos na expansão, com os respectivos custos marginais e a qualidade do serviço de energia elétrica proporcionada aos consumidores, particularmente os riscos de déficit.

O primeiro enfoque fixa o risco anual de déficit de energia, considerado adequado, resultando o valor do custo do déficit associado a este risco, que pode ser utilizado como parâmetro econômico de validação do risco adotado, pela comparação com os obtidos diretamente do valor econômico da energia elétrica na sociedade.

O outro enfoque é exatamente o contrário; considera-se o custo do déficit da energia elétrica na sociedade, resultando como consequência o risco do déficit relacionado com este custo. Os dois enfoques são equivalentes, sendo importante que se utilize o mesmo par de valores para as decisões referentes à expansão e à operação do sistema gerador. No subgrupo misto GCPS/GCOI, foi adotado o primeiro enfoque, tendo sido pesquisada, para o risco anual de déficit, a faixa de 3% a 7%.

Considerações referentes a: 1) restrições financeiras para investimentos no setor elétrico; 2) elevação dos custos das futuras usinas; 3) baixos valores dos custos do déficit para os primeiros patamares considerados, onde se localiza a maior parcela dos déficits, que são previsíveis com antecedência (estes três primeiros itens com indicações de elevar os riscos de déficit ); 4) custos dos déficits associados aos riscos analisados, que de alguma forma deu um balizamento econômico ao critério; e 5) todo o trabalho desenvolvido pelo subgrupo misto e estudos adicionais do GCPS  fizeram com que este colegiado aprovasse, em 1986, em carácter provisório, a adoção do critério probabilístico do risco anual de déficit de 5% para o ajuste do programa de obras de geração aos requisitos do mercado no horizonte de planejamento, em substituição ao critério determinístico do período crítico e da energia firme.

A utilização deste novo critério se mostrou adequada durante as quase duas décadas de atividades de planejamento e operação do sistema elétrico. A adoção deste critério de 5% significa que o racionamento no sistema brasileiro é um fenômeno raro – uma vez a cada mais ou menos 20 anos, e quando o mesmo ocorre, em geral, tem elevada probabilidade de se situar em valores inferiores a 10% da carga de energia, sendo identificado com antecedência, o que permite de alguma forma ser administrado pela sociedade.

Cabe comentar que, a partir de 1999, o GCPS e em seguida o CCPE, seu sucedânio no âmbito do MME, passaram a utilizar o critério correspondente ao enfoque da consideração do custo do déficit para a sociedade, sendo o risco do déficit resultante apenas um indicador da qualidade do atendimento. A Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica estabeleceu o custo do déficit de energia como parâmetro para a otimização da operação do sistema interligado nacional.

Apenas como reflexão, um pouco provocatória para debates, quando o assunto for novamente estudado em profundidade,  qualquer que seja o enfoque adotado - risco de déficit ou custo do déficit – o critério de atendimento, considerando o contexto atual e futuro do setor elétrico, em particular: 1) dificuldades de viabilizar financeiramente os elevados investimentos do setor elétrico; 2) elevação significativa dos custos marginais de expansão da geração para valores bem acima de R$100/MWh, na medida em que as usinas mais econômicas já foram todas construídas; 3) atitudes adotadas com a experiência do racionamento de 2001,  preventivas de novos eventos semelhantes, como por exemplo, a curva de aversão ao risco na operação; 4) criação do CMSE (Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico), no âmbito no novo modelo do setor elétrico, que de forma institucionalizada  identificará, com antecedência, futuros déficits, o que permitirá a adoção de medidas de administração de racionamentos em tempo hábil, com menores impactos para a sociedade, não se pode, a priori, excluir a hipótese de, por razões meramente técnicas e econômicas, se chegar a um critério de risco mais elevado do que o de 5%.

Considerando, por outro lado, a importância da energia elétrica na sociedade brasileira, já elevada e crescente com o tempo, a prudência recomenda um critério mais rigoroso para o risco do déficit anual de energia. Seria, no entanto, uma surpresa se o seu valor, a ser futuramente aprovado pelo CNPE, a partir das definições do MME, com base nos estudos da EPE, se situasse abaixo dos 3%, correspondente ao critério determinístico da CANAMBRA.

Para finalizar, um último comentário: caso se estabeleça um critério bem mais rigoroso do que 5%, será necessário adicionar novas usinas ao sistema gerador, que serão verdadeiramente usinas de reserva, operando bem abaixo de sua capacidade de produção, devido à existência no sistema hidrelétrico de energia excedente, a secundária, que seria mais econômica para suprir o mercado.

Neste caso, as usinas mais adequadas para reduzir o risco de déficit, por razões de economicidade, são novas hidrelétricas e usinas térmicas com baixo investimento unitário e totalmente flexíveis. Isto, no entanto, é outro tema, no contexto da necessária incorporação de usinas térmicas ao sistema gerador predominantemente hidrelétrico brasileiro e da competitividade entre a hidro e a térmica. 

Altino Ventura Filho é consultor, foi secretário-executivo do GCPS, diretor técnico-executivo da Itaipu e presidente da Eletrobrás.

Atualmente (2008), Dr. Altino é o Secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia.